Jéssica Gomes, diretora criativa da Sallve

Luiza Terpins
No Corre
Published in
10 min readJul 25, 2021

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A mineira de Nova Lima já representou o Brasil em Cannes graças a um projeto pessoal e hoje toca a área de criação de uma das principais marcas de beleza 'direta para o consumidor' do país

Quem

Jéssica Gomes, tenho 27 anos e sou diretora de criação da Sallve, marca DNVB de produtos de beleza. Difícil falar de si mesma sem falar de carreira, né?

Sou mineira de Nova Lima e filha caçula — minha irmã é 12 anos mais velha que eu. Minha mãe me teve com 44 anos, então lá em casa sempre existiu um choque geracional e isso reflete muito em quem eu sou. Fui uma criança mais adulta do que eu gostaria, mas ainda assim muito curiosa e agitada — e, claro, virei uma adulta ainda agitada e ansiosa.

Comecei fazendo um curso técnico do Sebrae em Administração junto com o ensino médio e depois me formei em Publicidade. Também tenho um MBA em construção de marca. Mas, assim, na época do vestibular tentei Arquitetura e até Engenharia Química — eu queria ser química forense porque gostava muito de ficção criminal, então achava que ia amar trabalhar na área…claramente eu não sabia o que eu queria [risos]. Acabei passando em Publicidade e resolvi começar.

Sou extremamente interessada pelas pessoas e curiosa. Já experimentei de tudo: caligrafia, teatro, dança, pintura, ler — faço de tudo um pouco e de muito nada. Estou neste momento em uma crise existencial de "poxa, precisava me aprofundar em alguma coisa, né?" Acho meus amigos sempre profundos em temas muito específicos e eu sou aquela generalista que fala de tudo um pouco.

E, claro, sou uma mulher negra, jovem, num cargo alto, então tem esses vieses e violências que também me atravessam.

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Como você chegou até aqui?

Comecei lá em Belo Horizonte trabalhando como redatora. Pensei que seria um bom caminho para conhecer diversas áreas e estudar assuntos diferentes. Acontece que, agitada que sou, chegou o momento em que eu já não estava mais satisfeita na agência. Passava o dia recebendo briefing e não podia perguntar nada…aí comecei a questionar se eu combinava com essa função mesmo, porque não me achava boa em desenvolver roteiros, por exemplo, mas sim em criar títulos, conversar e ouvir pessoas…Daí veio a dúvida: "será que eu devo mudar para planejamento?"

Em seguida comecei uma pós e lá encontrei duas amigas da graduação. Nós três estávamos odiando o curso e resolvemos passar 45 dias em São Paulo fazendo outros cursos, participando de palestras e visitando agências. Nessa época descobri um projeto chamado Ladies, Wine & Design, que foi criado pela Jessica Walsh, designer americana, e que tem capítulos ao redor do mundo.

Me inscrevi, consegui ir ao capítulo do Brasil e lá conheci a Thais Fabris e a Maria Guimarães, fundadoras da 65|10, consultoria focada em narrativas que retratam a mulher de uma forma mais real.

Aquilo foi um estalo muito grande para eu entender que o meu incômodo e vontade de questionar as coisas vinham porque a gente estava só criando a mesma narrativa, e não importava o briefing. Estávamos sempre partindo do mesmo lugar para chegar em conclusões muito óbvias. Eu tinha uns 20, 21 anos, e comecei a entender mais sobre mim, sobre não ver gente como eu nos espaços…Eu e essas duas amigas resolvemos levar o Ladies para Minas Gerais e abrir o capítulo Belo Horizonte. Era um encontro por mês, com 10 mulheres e temas diferentes, mas sempre relacionado a indústria criativa.

Foi um divisor de águas na minha vida. Fiquei muito mais corajosa criando essa rede e descobrindo possibilidades — as pessoas não acreditam que eu seja muito tímida, mas eu sou.

Cinco encontros depois, veio o primeiro convite para a gente fazer o Ladies em um museu para 250 pessoas. Falamos "ai, veja bem, a ideia original é ser para apenas 10, mas nesse caso podemos então inventar alguma coisa diferente?". Eles toparam, deram um budget e criamos o Museu das Minas, que foi uma ocupação para abordar o fato de que as mulheres só são obras dentro dos museus, e nunca as artistas. Aí depois chamaram a gente para organizar um outro evento com mulheres palestrantes e de repente vimos que tínhamos na mão uma rede que ia além do Ladies e que poderíamos aproveitá-la para mais coisas.

Criamos, então, o navaranda, uma plataforma de conexão e conteúdo para mulheres criativas. Hoje são cerca de 700 mulheres e já fizemos eventos, festas, webséries…tudo sempre na caixinha do projeto pessoal, mas que impactou muito o meu dia a dia de querer ter novas mulheres trabalhando comigo e ver novas narrativas.

Nessa época, em 2018, acabei me inscrevendo em um projeto de Cannes chamado See It Be It, que é um programa de liderança para mulheres criativas. Nem coloquei o meu portfólio da agência, apenas o navaranda, e achava que não seria uma das selecionadas, mas fui passando nas entrevistas até que chegou a notícia final.

Detalhe: eles mandaram o e-mail com a confirmação no feriado do dia 1º de maio e disseram que eu tinha até o dia 7 para enviar o número de passaporte e etc. Acontece que eu só abri esse e-mail no dia 3 e fiquei em pânico, porque eu não tinha passaporte — na verdade nunca tinha nem visitando outro país do Mercosul. Aí, óbvio que todos os perrengues possíveis aconteceram: quando fui fazer o documento, descobri que o meu RG estava vencido e eu nem sabia que isso era possível. Depois o problema era outro: eu precisava de dinheiro, né? No dia 12/5, que é o meu aniversário, eu abri uma vaquinha para comprar euro pedindo R$ 2.500 e acabei conseguindo R$ 9 mil. Gente que eu nunca nem vi na vida participou.

Cannes foi um mega teste de resistência, não só com o que rolou para eu chegar até lá, mas pela experiência como um todo. Eu nunca tinha falado inglês com um nativo e achava que esse seria um outro desafio, mas na real o desafio foi entender o inglês com sotaques da Turquia, da Índia, de todos os lugares do mundo — cada uma das 20 selecionadas era de um país diferente. Eram 9 horas direto de mentoria, palestras, cursos…foi bem intenso e mudou muita coisa dentro de mim.

A minha ida também teve uma ironia da vida: eu achava que se eu desistisse de ser redatora eu nunca ganharia Cannes, mas de repente eu estava lá por um projeto que nada tinha a ver com redação.

Essa rede do See It Be It existe até hoje, ainda nos falamos e nos consultamos sempre — e inclusive falei com elas quando rolou a oportunidade de sair da Avon (onde trabalhei logo que voltei, entre outubro de 2018 e janeiro de 2019) e ir para a Sallve, que até então era um power point.

Como é um dia de trabalho?

É uma loucura [risos]. Nós somos uma marca que cria fórmulas inspiradas por necessidades reais, e eu entrei na Sallve justamente para construir a comunidade que inspiraria o primeiro produto. Então faz parte do meu trabalho ouvir as pessoas e entender suas necessidades — e esse ouvir é de verdade, tá, e não por pesquisas ou focus group, por exemplo. É um nível de conversa e de proximidade muito maior.

De lá para cá está entre as minhas responsabilidades garantir que a gente cresça essa comunidade de forma saudável. Hoje em dia vemos muito por aí a ideia de customer centric enquanto discurso, mas que na prática acaba não funcionando ou sendo top-down.

Eu garanto que, não importa o momento da Sallve, tudo comece em uma conversa — esse “tudo” vai desde a embalagem, nome, quais são as necessidades reais e dores claras que ele atende, unboxing, campanha de lançamento…Hoje eu lidero indiretamente um total de 12 pessoas, e diretamente, 4.

Você tem algum ritual ou costume que tenha implementado para trabalhar com o time?

Quando a pandemia começou a Sallve tinha por volta de 30 pessoas, e hoje são mais de 120, então tem muita gente nova e processos novos — a sensação é de que estamos ajeitando as coisas com o carro andando, sabe? Mas o que eu tento é garantir pelo menos algum momento que a gente não precise falar só de trabalho.

Temos uma reunião quinzenal chamada "o baile todo", em que chamo todo o time e falamos sobre a vida, fofocamos. A ideia é ser uma reunião mais descontraída e sem aquela obrigação de sair com "next steps" e etc.

Engajamento de time é um dos maiores desafios, principalmente em pandemia. De 12 pessoas, umas 6 pegaram COVID, então é desafiador liderar pessoas sabendo que elas não estão bem, que as energias não estão legais, que a cabeça já não é a mesma…

Criamos na Sallve também as quartas sem Zoom, ou seja, em que é proibido fazer call. É uma ótima quebra na semana porque temos dois dias intensos, aí tem esse dia que ninguém te liga e você consegue focar, e mais dois dias intensos. Essa quebra foi tudo. É o dia de tomar um café demorado, cantar nos Stories…[risos].

O que você costuma fazer nas horas vagas?

Eu leio bastante e amo ouvir música na vitrola. Trocar o Spotify pela vitrola é uma das minhas formas de desacelerar. No Spotify eu fico ligada em poder escolher a música, já no analógico é diferente. Sábado de manhã ela começa a tocar e vai até domingo à noite.

Eu faço caligrafia — teve uma época até que eu postava, mas aí virou uma obrigação e competição comigo mesma e parei de postar. Ah, gosto também de beber (cada vez mais necessário, risos). Na Sallve a gente costuma fazer bolões sobre metas e ganhei dois na sequência, e os prêmios foram garrafas de Gin. De repente eu tenho kits de gin com todas as firulas do ritual — enquanto muitas pessoas começaram o ritual do café na pandemia, eu tenho o do Gin. Agora aqui em casa tenho um mini bar com tequila, vermute, gin…mas também foi uma empolgação de momento.

É engraçado esse choque de 2020 para 2021, né? Eu tinha uma energia absurda, fazia até TikTok, mas agora só de pensar eu já fico apavorada.

O que te ajuda a ser mais produtiva?

Nos últimos meses larguei alguns aplicativos e voltei a escrever tudo à mão no caderno. Também me ajuda muito ter uma visão do dia e dividir tudo entre tarefas e compromissos. Tarefa não necessariamente tem hora e data para acontecer, já os compromissos, sim. Anoto absolutamente tudo para não esquecer, até o almoço — eu sou daquelas pessoas que vão de carro e voltam de ônibus, sabe?

Música também me ajuda absurdamente. Eu monto muitas playlists despretensiosamente (a maioria é privada porque não fazem o menor sentido, mas me ajudam a concentrar).

E, por fim, pedir ajuda é algo que me ajuda a ser mais produtiva. Fala-se pouco sobre isso, mas é fundamental para não carregar tudo na cabeça.

O que ou quem tem te inspirado?

Eu gosto muito de conversar com as pessoas sem muita pretensão. Isso me faz falta durante a pandemia. Eu tinha um projeto chamado cafécajé, em que eu tomava café com pessoas aleatórias, e várias viraram amigas.

Fora isso, tenho olhado muito para outras mulheres negras em cargos de liderança, como a Grazi Mendes, da ThoughtWork; a Lisiane Lemos, do Google; a Bozoma Saint John, da Netflix; a Samantha Almeida, do Twitter; e a Helena Bertho, da L'Oreal.

Quais são os maiores desafios de trabalhar na sua área?

Acho que um grande desafio profissional meu tem mais a ver com a Jéssica pessoal. Eu não gosto de parecer mais do que ser. Parece até contraditório falar isso trabalhando no universo de publicidade, área em que é comum florear, inventar histórias, aumentá-las…mas isso para mim é quase que um esforço físico.

Vir para a Sallve foi bom porque se a gente não faz algo aqui dentro, a gente não vai colocar isso para fora. E isso está relacionado não só à diversidade, mas a produtos também. Se não é verdade para as pessoas, não vamos inventar que é.

Talvez meu maior desafio seja lidar com essa historia que vemos por aí de sinalizar virtudes e de saber que as intenções por trás de uma ação de marca podem ser 100% comerciais. Uma coisa é você vender margarina e para isso usar uma família feliz; outra coisa é vender uma causa, algo que diz sobre a vida e existência das pessoas, e usar como lucro.

Um perfil de rede social/site/newsletter que você acessa todos os dias?

Eu sou a pior pessoa para isso…Não tenho muito controle do que leio ou de rotina nesse quesito. Uma coisa que eu faço para me manter inteligente é não ler só coisas da área. O meu estilo preferido é poesia, então sempre intercalo um livro técnico com alguma obra do gênero. Deixei meus livros de ficção criminal em Minas Gerais. Aqui em São Paulo tenho uma estante só de autores negros e outra só com livros escritos por mulheres.

O que não pode faltar na sua rotina?

Não tem um dia sequer que eu não ouça música. Minhas playlists são aleatórias e ultimamente tenho escutado bastante R&B e Soul…Essa abaixo é mais organizada:

Quem você gostaria que participasse dessa seção?

A Lelix, ela é community builder com foco em recrutamento e tem um dia a dia curioso; e a Priscilla Geremias, que é jornalista na Marie Claire.

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Sobre o nocorre:

Oi, aqui é a Luiza Terpins, criadora do nocorre. Desde 2018 eu bato papo com pessoas que estão na correria para fazer um projeto acontecer e conto aqui suas trajetórias e bastidores. O meu corre atualmente é na Além, onde sou co-fundadora e head de conteúdo. Antes, fui head de comunicação no iDEXO by TOTVS e jornalista na revista da GOL (Trip Editora). Você também me encontra no Linkedin e no Instagram :)

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